Por: Folha de S. Paulo
Publicado em 20/06/2020
Um trecho da lei da propriedade industrial, elaborada em 1996, mobiliza a indústria farmacêutica. O embate opõe grandes laboratórios internacionais, capazes de investir e lançar os chamados medicamentos de referência (produtos inovadores), e as empresas de genéricos e similares, além de laboratórios de referência brasileiros.
Os fabricantes de genéricos e similares argumentam que é preciso alinhar o prazo de vencimento de patentes no Brasil ao adotado no resto do mundo –pois aqui o prazo pode durar até dez anos mais.
De outro lado, laboratórios internacionais dizem que o prazo no Brasil precisa ser maior, dada a burocracia para conseguir patentes no país, e alegam que mudar a regra prejudicaria o direito em todos os setores da economia.
A discussão gira no em torno do parágrafo único do artigo 40 da lei da propriedade industrial. Esse trecho amplia o prazo de vigência de uma patente em no mínimo dez anos além do período de 20 anos –considerado por especialistas como o tempo padrão em outras legislações do mundo.
Lá na década de 1990, empresas internacionais já reclamavam que o ritmo do Inpi (Instituto Nacional da Propriedade Industrial), órgão responsável por autorizar as patentes no Brasil, era moroso. Como não se conseguiu agilizar a liberação das patentes, veio o dispositivo legal que ampliou o prazo de validade.
A lei brasileira determina proteção de um produto industrial por 20 anos a partir de sua invenção. É uma garantia de resguardo econômico ao inventor. Nesse período, ele pode usufruir com exclusividade de ganhos pela venda de sua criação.
O polêmico parágrafo acrescenta que a vigência de uma patente não pode ser inferior a dez anos a partir da autorização do Inpi. Assim, a proteção de qualquer produto industrial –seja um fertilizante ou um equipamento de telecomunicação– pode durar até 30 anos no Brasil.
Especialistas no tema dizem que a regra é uma legítima jabuticaba. No entanto, como existe toda sorte de limitações para inovar no Brasil, a regra resistiu ao tempo sem incomodar a maioria das indústrias.
Passou a ser uma restrição à produção de remédios genéricos e similares à medida que o segmento se expandiu no país.
Detalhe: o Inpi demora mais tempo ainda, dizem advogados, para ratificar a patente de medicamentos, o que amplia ainda mais a exclusividade de remédios.
Farmacêuticas nacionais e organizações da sociedade civil, como a Médico Sem Fronteiras, se articulam para defender a exclusão do parágrafo. Eles afirmam que o texto emperra o desenvolvimento local de remédios, encarece as compras do governo para o SUS (Sistema Único de Saúde) e incorre em práticas anticoncorrenciais.
“Alguns medicamentos têm impacto grande no SUS. Não há opção genérica disponível, e fica ainda mais difícil para o governo distribuir o remédio para a população”, diz Felipe Carvalho, coordenador no Brasil da campanha de acesso do Médicos Sem Fronteiras.
Ele destaca que, na lista de cerca de 60 medicamentos com prazo de extensão além da patente, há dois para o tratamento de HIV, que é dado pelo SUS. Eles custam US$ 2.847 por paciente ao ano (caso do raltegravir) e US$ 2.154 ao ano (caso da etravirina). Alguns genéricos chegariam a US$ 438, segundo Carvalho, se a compra fosse permitida.
Um estudo encomendado pela farmacêutica Libbs à Universidade Federal do Rio de Janeiro concluiu que, de 2014 a 2018, R$ 10 bilhões foram gastos pela União com nove medicamentos de alto custo.
A pesquisa, coordenada pela economista Julia Paranhos, calculou quatro alternativas à compra do medicamento de referência, que somente seriam possíveis se não houvesse o mínimo de vigência de dez anos. No melhor cenário, a redução nos gastos desses remédios poderia ser de 57,4% (R$ 3,9 bilhões) nos respectivos prazos de extensão.
Do outro lado, multinacionais alegam que, nesses quase 30 anos desde o parágrafo polêmico, o Inpi continua lento, e a regra brasileira é uma proteção para quem investiu milhões em inovação. Dizem ainda que a simples exclusão do parágrafo vai afetar o direito de propriedade não apenas das farmacêuticas.
A Interfarma, que representa grandes multinacionais como Pfizer, Bayer, Biogen, GSK e Sanofi, defende a constitucionalidade do parágrafo único. O prazo médio para concessão de patentes gerais no Inpi é de 8,4 anos, podendo chegar a uma média de 10 anos para produtos do setor farmacêutico.
“Como o processo sempre atrasou, restam poucos anos para usufruir a patente. Esse parágrafo apareceu para cobrir uma deficiência da agilidade de concessão da patente em relação a outros países, como EUA, China, Canadá e países da Europa”, afirma Elizabeth de Carvalhaes, presidente da Interfarma, que é amicus curiae no processo do STF.
A discussão no Supremo não tem data marcada para ocorrer, mas, diante da necessidade de acelerar pautas que envolvem saúde pública no contexto da pandemia de Covid-19, a expectativa é que a corte julgue o tema até agosto. O relator do processo é o ministro Luiz Fux, que assume a presidência do STF em setembro.
O questionamento foi levantado inicialmente pela Abifina, associação de indústria de química fina e biotecnologia, e levado ao STF em 2014 pelo então procurador-geral da República, Rodrigo Janot. Em parecer, ele se manifestou pela procedência da ação direta de inconstitucionalidade defendida pela associação.
O tema esquentou em maio deste ano com a pandemia.
Até a década de 1950, o Brasil era signatário de tratados internacionais de propriedade industrial, mas só depois disso adotou a proteção a medicamentos e o polêmico parágrafo.
“Algumas transições foram equivocadamente aplicadas e geraram vantagens extras a titulares de patentes, em especial empresas estrangeiras e de [medicamentos] de referência”, diz a advogada Nathalia Mazzonetto, especialista em propriedade intelectual no escritório Müller e Mazzonetto.
Farmacêuticas como Aché, EMS e Libbs, representadas pelo Grupo FarmaBrasil, pleiteiam que o STF julgue o trecho inconstitucional por entenderem que o prazo adicional de dez anos dificulta a entrada de novos concorrentes, pois uma patente pode vencer em todo o mundo e continuar valendo no Brasil.
Entre os produtos com licença estendida, há medicamentos em fase de testes para o auxílio no combate à Covid-19. É o caso da favipiravir, droga antiviral patenteada pela japonesa Fujifilm (a mesma marca que vende máquinas fotográficas) sob o nome de Avigan. Em vários países, a patente caiu em 2019, mas, no Brasil, apenas em 2023.
“O parágrafo não está protegendo investimento em inovação, está represando investimento e acesso da população a medicamentos”, diz Reginaldo Arcuri, presidente-executivo do Grupo FarmaBrasil.
Arcuri afirma que a indústria nacional precisa de segurança jurídica para trabalhar. “Não dá para ter o risco de o detentor da patente dizer que o prazo não venceu por causa do parágrafo único.”
Em maio, o TCU (Tribunal de Contas da União) propôs, em relatório, que, diante do imenso volume de aquisições de medicamentos pela administração pública, a Casa Civil reconsidere avaliar a discussão sobre a revogação do parágrafo único do artigo 40.
Na semana passada, a Interfarma incluiu petição nos autos do processo solicitando audiência pública para que todos os setores da economia possam se manifestar sobre o trecho. “Temos de 12 mil a 15 mil patentes no setor farmacêutico, mas serão afetadas de 35 mil a 38 mil patentes no país, de todos os setores que você puder imaginar”, afirma Elizabeth de Carvalhaes.
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