Publicado 10/02/2019 às 09:50 – Atualizado 11/02/2019 às 11:18
Evangelina Martich, entrevistada por Raquel Torres
Hoje (11/2) faz 20 anos que a Lei dos Genéricos foi promulgada. Junto à Política Nacional de Medicamentos, ela tem sido importantíssima para aumentar a oferta e diminuir os custos – não só para quem chega no balcão da farmácia mas também para o Estado, que economiza na compra para distribuição e ainda atua como produtor.
Para avaliar os impactos da lei, o Outra Saúde conversou com Evangelina Martich, doutora em política social e coordenadora de projetos no Instituto de Saúde Global de Barcelona. Durante o mestrado, realizado na Fiocruz, Evangelina se debruçou sobre as leis de genéricos no Brasil e na Argentina. Nesta entrevista ela explica por que o Brasil se tornou o país mais avançado da América Latina nesse aspecto, mas fala também dos problemas de acesso a medicamentos
Quais são os antecedentes da Lei dos Genéricos no Brasil? Como era o acesso da população a medicamentos, qual era o grau de desenvolvimento da indústria nacional e quais condições econômicas e políticas foram pano de fundo para a construção desta lei?
O Brasil tinha há muito tempo uma indústria de medicamentos similares bem desenvolvida. É importante diferenciar essas categorias de medicamentos: medicamentos similares são cópias dos medicamentos inovadores, e os genéricos são intercambiáveis: no momento do registro sanitário, apresentam-se provas de bioequivalência e biodisponibilidade. Os genéricos são portanto mais seguros do que os similares. Então houve na época uma questão com as fabricantes de similares, que temiam perder uma parcela do mercado. Mas a indústria brasileira, no momento em que a Lei dos Genéricos foi promulgada, viu aí um nicho de mercado e no geral não se opôs.
Ao contrário do que aconteceu na Argentina. Lá, quando deputados discutiram a lei, a indústria nacional foi o principal opositor à lei, porque as empresas argentinas já eram produtoras de medicamentos de marca, e não queriam concorrência no mercado. E a finalidade última da Lei dos Genéricos é aumentar a concorrência no mercado. A lei de oferta e demanda básica da economia explica: quanto mais opções de um mesmo produto no mercado, mais os preços tendem a cair. Sempre falo que podemos pensara questão dos medicamentos comparando outros produtos cuja disponibilidade no mercado seja ampla e cujos preços tendem se equilibrar. Mas temos que considerar que a demanda por medicamentos é inelástica. Isso significa que se uma pessoa precisa de remédio, se dispõe a pagar tudo o que tem e até o que não tem por aquele medicamento específico de que ela precisa. De fato há pessoas que caem na pobreza para pagar por medicamentos. Não se compra por escolha, mas por necessidade.
E existe ainda a discussão sobre distribuição e a produção de medicamentos no setor público.
Sim, são coisas diferentes. Uma coisa é a indústria pública de medicamentos, e outra é a indústria privada de medicamentos genéricos. E as duas são válidas. O Brasil tem uma indústria pública de medicamentos forte, liderada por Farmanguinhos, na Fiocruz. Houve um tempo em que Farmanguinhos produzia 25% dos medicamentos que circulavam no SUS, a indústria pública brasileira é bem forte.
Vale a pena destacar que há duas discussões: se os países devem produzir medicamentos – eu avalio que sim, que devem –, e o que eles devem produzir.Porque a ideia da produção pública é que há um investimento público para responder a uma demanda epidemiológica, para dar respostas reais e atingir resultados na saúde. Essa é a lógica da produção pública de medicamentos. Não vale a pena produzir remédios que não sejam os demandados pela população.
E em paralelo temos a produção privada de genéricos. Há muitos laboratórios farmacêuticos que inclusive produzem os remédios inovadores e também os genéricos, eles próprios geram concorrência no mercado dentro da própria empresa.
Quando a Lei foi aprovada no Brasil, a produção de genéricos já era uma realidade em outros países? Onde os genéricos chegaram primeiro?
Na América Latina o Brasil foi o primeiro, e na região o país é hoje o que mais vende genéricos, eles representam perto de 30% do total de vendas de medicamentos. Mas países desenvolvidos já produziam há muito mais tempo. E mesmo a parcela de venda de genéricos no Brasil é baixa em relação a esses países, onde a venda de genéricos está acima de 60% do total.
Por quê?
Ninguém sabe ao certo. Mas o fato de eles terem uma produção mais antiga é uma variável. Nenhum país começou a disponibilizar genéricos e, de um dia para o outro, eles começaram a liderar as vendas. Mas há outros fatores. Nem todos os remédios já possuem versões genéricas, e também é preciso ainda fazer um trabalho junto à população para convencê-la da qualidade dos genéricos, porque muitas pessoas ainda têm a crença de que eles são ruins. O marketing da indústria farmacêutica sobre a categoria médica é forte, e os próprios médicos, mesmo que a lei exija que nas receitas os medicamentos sejam indicados pela sua denominação comum internacional [o nome oficial, não comercial], muitas vezes eles colocam ao lado, entre parênteses, o nome do remédio de marca, do laboratório de que ele ‘gosta’.
Outra questão é que o Brasil faz bem o controle de preços. Quando se chega a uma farmácia brasileira, o genérico de fato é mais barato do que o medicamento de marca. Na Argentina, por exemplo, isso não é verdade. Às vezes ele é até mais caro. Porque a lei argentina não traz esta obrigação. Já no Brasil a lei é muito clara: o preço do medicamento genérico precisa ser pelo menos 35% mais baixo do que o do produto inovador.
No Brasil, a lei deu certo porque não foi uma medida isolada, e isso ajuda a explicar por que o país tem uma política de medicamentos avançada. Se você pensar na implantação de genéricos a partir de uma cesta de ferramentas, o Brasil implementou todas as ferramentas ao mesmo tempo. A Lei dos Genéricos foi promulgada na mesma época da criação da Anvisa, uma agência que é reconhecida no mundo inteiro pela boa avaliação dos medicamentos. Então o Brasil criou a Anvisa para regular; criou uma lei de Genéricos que determina explicitamente que os eles devem ser mais baratos; criou a CMED [Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos], que regula os preços de venda no mercado – não se pode vender remédios pelo preço que se quer; e criou a Conitec [Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS], que analisa as tecnologias sanitárias a serem cobertas pelo SUS, fazendo uma avaliação de custo-efetividade em relação às tecnologias já existentes para ver quando vale a pena o SUS cobrir aquela nova tecnologia.
O fato de ter implantado tudo isso paralelamente ajuda a explicar por que essa política se mantenha com sucesso há 20 anos. O Brasil já trocou de governos, de ministros, a lei dos genéricos continua funcionando muito bem, junto com a Política Nacional de Medicamentos.
Deu tão certo que já houve momentos de disputa pela ‘paternidade’ da lei…
Sim, e ela surgiu no governo de Fernando Henrique Cardoso. Agora, quem foi o impulsor da política de medicamentos foi o Lula. Na campanha presidencial ele falava do Farmácia Popular, eu me lembro na época que essa foi uma das promessas de campanha dele. E quando José Gomes Temporão foi ministro da Saúde, ele foi um ministro muito ativo em relação à política de medicamentos e foi aliás um dos primeiros do mundo a implementar uma licença compulsória[EM2] (uma suspensação aos direitos de patentes permitindo assim a produção genérica)
Foi no caso da quebra de patente de um remédio para tratamento da Aids, certo?
Sim.
Em que medida a Lei de fato melhorou o acesso da população aos medicamentos?
É importante entender que a finalidade da Lei é criar competitividade por preços no mercado. A existência da lei gera um espaço para o aumento da oferta no mercado. Existem pelo menos duas vias de acesso a medicamentos. Uma é a via comercial, quando você vai à farmácia e paga por eles. Outra é a via institucional, quando os governos fazem compras centralizadas e distribuem gratuitamente, por exemplo no SUS. Na América Latina e no Brasil, a principal via é o mercado, mesmo que o Brasil tenha implantado essa via institucional.
Por isso, a variável do preço gera uma barreira importante ao acesso. A criação da Lei de Genéricos trouxe a possibilidade de ter produtos a preços menores, e além disso o Brasil criou mecanismos para a expansão da indústria e da produção nacional. Quando comentei que as empresas brasileiras identificaram um nicho de mercado, foi porque passou a haver esse incentivo à produção industrial de genéricos. Aqui existe muita oferta, quando se vai à farmácia é possível ver a quantidade de genéricos nas prateleiras. Então a lei foi, sim, importante para criar oferta e preços menores. E a indústria nacional se fortaleceu muito.
Em comparação, na Argentina isso não foi feito. A lei criou a obrigação de que médicos escrevam na receita a denominação comum internacional, e é proibido colocar o nome da comercial dos remédios. Mas não foi feito nada além disso. Dizemos que, lá, a lei transformou todos os produtos disponíveis em genéricos, porque eles não usam mais o nome de marca. Mas não há preços menores, nem aumento na produção industrial.
Quais são os problemas ou limitações da nossa Lei dos Genéricos?
Sinceramente, não sei se tenho críticas a esta lei. Um problema mais geral é na verdade a garantia de fato do acesso aos medicamentos. O Brasil é um país gigante com serviços de saúde extremamente descentralizados, e é muito difícil comparar a capacidade de resposta de um grande município e de uma pequena cidade, que muitas vezes não tem boas condições de gestão.
Em muitas cidades os usuários saem das unidades de saúde com as prescrições, mas não com os medicamentos em mão.
Sim. Uma crítica que tenho à política brasileira de medicamentos em geral é em relação ao acesso a medicamentos ambulatoriais. Há dois tipos de remédios: os hospitalares, que as pessoas recebem quando estão hospitalizados, e os ambulatoriais, que são tomados em casa. Por exemplo, quando alguém vai à unidade de saúde, sai com uma receita de um medicamento. No caso do setor privado, a lei brasileira não obriga os planos privados de saúde a cobrirem medicamentos do tipo ambulatorial. A pessoa vai ao médico, sai com uma prescrição, vai à farmácia e paga do seu bolso. Em outros países, os planos precisam cobrir um percentual desse valor, como 40%. Isso é um problema no Brasil, onde quase 30% da população usa planos de saúde. A pessoa consegue pagar o plano todo mês, mas não consegue pagar pelos remédios.
Existe um caso que volta e meia chama atenção no Brasil: o do medicamento Sofosbuvir, que tem um custo muito elevado e é importante para cura da hepatite C. No ano passado a patente foi dada à farmacêutica Gilead e houve grande pressão para que essa patente não fosse concedida, para que a Fiocruz pudesse produzir o genérico, o que geraria grande economia. Esse é um caso incomum ou há outros semelhantes?
Na verdade a discussão desse medicamento específico foi uma questão em todo o mundo. Seu preço é absurdo, e em geral quando os medicamentos são muito caros os sistemas de saúde financiam, pois ninguém pode pagar por eles. Mas os sistemas de saúde também ficam prejudicados, os orçamentos públicos não são infinitos. Então houve uma grande discussão global, nos Estados Unidos, na Espanha, etc.
O problema dos preços altos é que, segundo as farmacêuticas, elas investem muito no processo de desenvolvimento, portanto esses custos devem ser repassados ao preço. É em parte verdade, mas o fato é que ninguém sabe realmente quanto custa cada uma das etapas da produção de um novo remédio: as pesquisas, os testes clínicos, a produção, a publicidade, todas as etapas até que eles cheguem às prateleiras. Isso não é revelado, há apenas uma conta do processo total.
Você comentou que a nossa política de medicamentos, incluindo a legislação referente aos genéricos, é bem ‘redonda’, e por isso tem sucesso há tanto tempo, mesmo mudando os governos. Há riscos com este novo governo, de Jair Bolsonaro?
Sim, total. Em relação a tudo.
Mas quais seriam, nesta questão específica?
Com certeza podemos nos preocupar, embora seja difícil saber o que podemos esperar. Ontem mesmo [06/02, dia anterior à realização da entrevista], por exemplo, um deputado dele apresentou um projeto de lei na Câmara para proibir alguns tipos de contraceptivos no Brasil. É ridículo. A verdade é que podemos esperar qualquer coisa.
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