Por Renato Onofre e Fábio Fabrini
Durante a pandemia do novo coronavírus, o Ministério da Saúde tem pago variações de até 185% no preço de produtos necessários para abastecer redes públicas federal, estadual e municipal.
Análise de 34 contratos emergenciais assinados pela pasta desde o início da crise mostra que o órgão desembolsa a empresas distintas valores díspares para materiais com a mesma descrição técnica.
A maior diferença encontrada foi nas sapatilhas próprias para hospitais. O calçado feito de TNT é usado até o tornozelo para evitar que médicos, enfermeiros e pacientes carreguem microrganismos grudados nas solas para dentro das alas de tratamento.
O órgão pagou R$ 0,07 por cada par numa compra de 100 mil itens feita em 2 de março, antes da declaração de pandemia, com um fornecedor. Menos de um mês depois, no dia 26, assinou contrato com outra empresa, pagando R$ 0,20.
O cobiçado álcool em gel —que teve altas de até 300% no varejo de alguns estados, segundo os Procons– também está saindo mais caro para o governo. No início da crise, o frasco de 500 ml foi vendido à pasta por R$ 3,91; no início de abril, o valor pulou para R$ 6,68, aumento de 70%.
No ano passado, ainda em período de normalidade, o recipiente com o dobro do volume (um litro) chegou a ser vendido por R$ 5,48 às redes públicas. A referência consta do banco de preços em saúde, mantido pelo ministério.
Procurado pela Folha, o Ministério da Saúde atribuiu as variações à flutuação cambial e à questão mercadológica, de oferta e demanda. Afirmou que a compra de insumos, equipamentos e afins é um dos maiores desafios agora.
Aventais, luvas, toucas e máscaras, exemplificou, são os produtos mais difíceis de encontrar. O ministério admitiu que parte das aquisições que planeja não tem se concretizado por falta de propostas financeiras ou de logística (prazo e entrega) viáveis.
Segundo o ministério, ao fazer chamamento público para adquirir material ou serviço, não há a determinação de preço máximo, mas elaboram-se valores de referência.
As variações se repetem em outros itens comprados para abastecer hospitais, como kits para leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva), luvas, máscaras, toucas e reagentes.
Em alguns casos, a pasta não tem conseguido ganhos de escala. Em um contrato, comprou 500 mil máscaras cirúrgicas a R$ 0,96. Em outro, pactuou a aquisição de 20 milhões a R$ 2,08 cada —116% a mais. Segundo o banco de preços, era possível comprar o produto em 2019 a R$ 0,10.
Para a entrega do lote de máscaras, o ministério firmou contrato de R$ 41,6 milhões com a Aura Pharma Importação e Exportação de Medicamentos. Dono da empresa, Fernando Lacerda André diz que não é mais possível encontrar a mercadoria em fabricantes nacionais e que está negociando o fornecimento na China, o que classifica como “trabalho de Hércules”.
No ano passado, afirma, comprava-se cada item a cerca a de R$ 0,07 de um fornecedor brasileiro. Com a pandemia, preços se inflacionaram, puxados pela valorização do dólar, e a logística para trazer o material está mais difícil.
Quando fechou o contrato com o governo, a moeda americana estava cotada a R$ 4,63, mas subiu para R$ 5,22, o que encareceu o valor. Além disso, há menos aviões disponíveis.
“Essa carga corresponde a um Boeing 747 cheio. Antes, o frete estava a US$ 600 mil. Agora, passou para US$ 1,9 milhão. Os Estados Unidos fretaram a maioria dos aviões”, diz.
O uso de navios, opção mais barata, está descartado, ante a necessidade de que as mercadorias cheguem aos hospitais com rapidez.
Uma vez embarcado, o carregamento tem de cumprir rotas específicas entre China e Brasil para não correr o risco de ser confiscado por outros países no reabastecimento.
Lacerda afirma que há uma fila imensa de compradores aguardando produtos nas fábricas da China. Apenas para entrar na espera foi necessário pagar quase 50% do valor da encomenda. O restante só pode ser despachado com o pagamento total, mas ele está tentando, sem sucesso, levantar empréstimo em bancos.
“Com a altíssima demanda global, os equipamentos de proteção individual [EPIs] viraram uma espécie de commodity, fazendo com que ocorra ‘leilão’ dos produtos. Há risco de perder a mercadoria para os EUA, que chegam à China com cargueiros e pagamento à vista.”
Lacerda calcula que a fatura da fábrica chinesa, convertida para a moeda brasileira, sairá a R$ 36 milhões. Para que os custos não superem o valor acertado com o ministério, está tentando encontrar alternativas para o frete.
Ele diz que não está diante de uma mera operação comercial, mas de uma missão. “Queremos trazer as máscaras. Precisa ficar claro que não é o empresário que está se aproveitando da situação para fazer dinheiro. A gente corre o risco de tomar prejuízo.”
Nas aquisições do álcool em gel, também não houve ganho de escala. O preço mais baixo (R$ 3,91) foi pago no menor lote, de 100 mil frascos. O mais alto (R$ 6,68) foi praticado num contrato muito maior.
As variações no valor desse e de outros componentes já são investigadas pelo Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica).
O órgão mapeou os principais participantes dos mercados de saúde em todo o país e solicitou o envio de notas fiscais relacionadas à comercialização de materiais e serviços de uso no combate à Covid-19.
O Cade quer comparar os preços praticados de novembro de 2019 até agora, com o objetivo de verificar eventuais aumentos abruptos e margens de lucro que possam caracterizar ilícitos concorrenciais.
Desde o fim de março, o Ministério da Saúde tem alertado para desabastecimento de bens para proteger médicos e outras categorias.
O aumento acelerado no número de doentes e mortos pela Covid-19 tem pressionado sistemas de saúde ao redor do mundo e impulsionado a aquisição de EPIs, bem como respiradores e leitos de UTI.
No último dia 1º de abril, o ministro Luiz Henrique Mandetta (Saúde) afirmou que a maior preocupação da pasta é conseguir comprá-los.
Na terça (7), ele se reuniu com o embaixador chinês, Yang Wanming, para pedir ajuda ao Brasil. Mandetta disse que a China domina 90% de todo o mercado mundial desses itens e que ficou fechada para a exportação desde o início do ano por conta dos efeitos da pandemia na região.
O Congresso tem ao menos dois projetos de lei que tratam do congelamento de preços de medicamentos e de um teto de valor a ser cobrado por itens essenciais ao combate do coronavírus.
O Departamento de Estudos Econômicos do Cade elaborou no início de abril notas técnicas apontando, no entanto, preocupações concorrenciais relacionadas às propostas estudadas no Legislativo.
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