Publicado em 20/08/2019
Por Donato Paolo Mancini e Hannah Kuchler
A Gilead Sciences não solicitou exclusividade ao buscar nos Estados Unidos aprovação para o Truvada, um medicamento que poderia acabar com a epidemia de AIDS, e que seria usado como tratamento preventivo em 2012. É o que mostra uma análise dos documentos federais.
Ativistas e especialistas jurídicos afirmam que essa não exclusividade e as patentes apoiadas pelo Estado para o medicamento significam que o monopólio efetivo da Gilead nos EUA é inválido e que as alternativas genéricas poderão estar disponíveis mais cedo.
Análises dos “Orange Books” da Food and Drug Administration dos EUA (FDA), que entre outras informações listam as patentes de medicamentos, conforme fornecidas pelos grupos farmacêuticos, não mostram exclusividade no uso preventivo do Truvada, um tratamento conhecido como profilaxia pré-exposição (PrEP, na sigla em inglês).
A PrEP tem uma eficácia de 99% na prevenção à infecção pelo HIV. A FDA aprovou o Truvada para uso terapêutico e preventivo em 2004 e 2012, respectivamente.
“O Truvada não recebeu da FDA nenhuma exclusividade específica para a PrEP que estivesse em efeito entre 2012 e agora. Essa ausência de exclusividade significou e significa um obstáculo a menos à chegada dos genéricos ao mercado”, disse Christopher Morten, advogado e professor da Yale Law School.
No entanto, a Gilead contestou isso dizendo que “as patentes listadas no Orange Book para o Truvada cobrem todos os usos do produto, incluindo tratamento para HIV [e dois tipos de profilaxia, incluindo a PrEP]. Não obtivemos novas patentes relacionadas à indicação de PrEP”.
A companhia farmacêutica está sob ataque nos EUA por causa do preço elevado que estabeleceu para o Truvada na PrEP, onde ela no momento não tem concorrência. Ativistas de especialistas em propriedade intelectual afirmam que o medicamento não teria sido aprovado para a prevenção contra o HIV sem importantes dados sobre testes patrocinados pelos Centros de Controle de Doenças (CCD) do governo e outros organismos.
Isso significa, afirmam eles, que a companhia pode ter de pagar royalties ao governo sobre as vendas do medicamento.
A Gilead cobra mais de US$ 20 mil ao ano pelo tratamento nos EUA – preço três vezes maior que o de 2004. Ela contesta as alegações de que deve royalties sobre o medicamento e não quis informar quanto custa produzir e vender o Truvada.
Morten e seus colegas de Yale analisaram as patentes do CCD em nome do PrEP4All, grupo de defesa do consumidor. O CCD não respondeu a pedidos para comentários. A Gilead disse que “acredita piamente” que as patentes do governo dos EUA são inválidas. Ela disse que gastou US$ 1,1 bilhão em pesquisa e desenvolvimento do Truvada desde 2000, mas nas quis desmembrar os custos ou informar o quanto gastou com PrEP.
A companhia disse que seus cientistas trabalharam em uma pesquisa precursora de PrEP mas não receberam os créditos apropriados. Mesmo assim ela não quis dizer por que não tentou obter o reconhecimento de suas contribuições.
Segundo uma análise do “Financial Times”, com base em informações e estimativas compiladas pela RBC Markets, se fosse verificado que os royalties são devidos, a Gilead poderia estar devendo pelo menos US$ 1 bilhão nesses pagamentos.
O “The Washington Post” revelou a existência de patentes do governo, levando a uma análise do Departamento de Justiça dos EUA. A Gilead não quis comentar essa revisão. O Departamento de Justiça não respondeu a pedidos para comentários.
Das vendas de cerca de US$ 13 bilhões do Truvada nos EUA desde 2013, US$ 5 bilhões foram para PrEP. Se fosse constatado que royalties são devidos, essa soma poderia cair entre 7% desses US$ 5 bilhões, ou três vezes mais se danos tivessem de ser reparados.
“A falha de sete anos do CCD em aumentar adequadamente a escala do PrEP nos EUA resultou em dezenas de milhares de americanos contraindo inutilmente o HIV”, disse James Krellenstein da PrEP4All. “O CCD detém patentes que poderiam reduzir simultaneamente o preço da PrEP, proporcionando ao mesmo tempo bilhões de dólares em recursos adicionais para as comunidades mais vulneráveis, para ajudar a acabar com a epidemia da AIDS na América.”
A Mylan, que fabrica a versão genérica do Truvada, paga royalties ao CCD sobre algumas de suas vendas. A companhia disse que quando o mercado genérico se consolidar nos EUA, ela continuará fazendo a isso. A Gilead aguarda uma decisão da FDA sobre a PrEP com um novo medicamento, o Descovy, que ela espera venha a suplantar o Truvada, na medida em que os genéricos chegarem ao mercado no fim do ano que vem.
Ativistas e especialistas em propriedade intelectual vêm afirmando que o CCD deverá manter o direito legal vigente de exigir compensação da companhia mesmo que todos os pacientes do Truvada mudem para o Descovy. Perguntada sobre essa possibilidade a Gilead discordou, reiterando que acredita que as patentes do governo são inválidas.
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